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quinta-feira, 10 de novembro de 2011
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
Uma educação do indivíduo inteiro para um mundo unificado.
Claudio Naranjo
“Quase
toda educação tem uma motivação política: propõe-se a fortalecer algum grupo,
nacional, religioso ou social na competição com outros grupos. É esta motivação
o que principalmente determina que matérias são ensinadas, que conhecimento é
oferecido e que conhecimento é ocultado e que determina ademais que hábitos
mentais se espera que os pupilos cultivem. Praticamente nada se faz em função
do desenvolvimento interior da mente e do espírito; com efeito, aqueles que
receberam mais educação sofreram com freqüência uma atrofia mental e
espiritual.”
Bertrand
Russel, em Grace
Llewelyn, Op. cit.
“Mais vale pouco conhecimento de coisas
superiores do que muito conhecimento de coisas inferiores.”
Tomás de Aquino
Fala-se muito hoje em dia de uma
“mudança de paradigma” na ciência e, mais geralmente, no modo de compreender o
mundo e o ser humano. Qual é esse novo paradigma, que invocam tanto a nova
física como a psicologia contemporânea, e como, de um modo mais ou menos
implícito, está afetando praticamente todos os campos do saber e do fazer?
Podemos chamá-lo “holismo” ou
“integralismo”: um enfoque centrado no todo. Esta é a perspectiva que subjaz a
inspirações tão diversas como a teoria geral de sistemas, o enfoque sistêmico
da ciência da administração e a gestão de empresas, o estruturalismo, e a
psicologia da forma. A característica mais chamativa de nossa época é uma nova
maneira de conceber as estruturas, a organização, a inter-relação das partes em
um todo. A vida e o universo se nos
apresentam hoje em dia como
meta-estruturas evolutivas.
Há uns dois mil e quinhentos anos, o
Buda contava a história de alguns cegos que faziam uma idéia do que era um
elefante tocando-o. Assim, um o comparava a uma palmeira, outro a uma corda,
outro a um leque, etc., segundo suas mãos exploravam uma pata, o rabo, uma
orelha, ou outras partes do animal. Esta história, adotada mais tarde pelos
sufís, tornou-se particularmente popular hoje em dia e com razão, pois,
expressa o florescimento no espírito de nosso tempo de uma compreensão cada vez
mais generalizada de que o todo é, efetivamente, algo além da soma de suas
diversas partes.
Esta mudança de perspectiva sobre o
mundo é, sem dúvida, reflexo de um processo vivo: se no âmbito intelectual
estamos em uma época de holismo, em termos mais gerais pode-se dizer que
estamos numa era de síntese. Não só nos tornamos mais interdisciplinares, mais
ecumênicos, mais interculturais, mas também, cada vez mais, vamos sentindo a
necessidade de nos tornarmos pessoas completas em um mundo unificado.
A educação holística, como o enfoque
holístico da realidade em geral, é parte dessa tendência sintetizadora que está
em marcha. Foi
Rousseau, pai do romantismo e avô da revolução francesa, o
primeiro a chamar a atenção sobre a importância capital da educação dos
sentimentos. Em seguida outros, como Dewey, Maria Montessori e Piaget, puseram
a ênfase na aprendizagem através da ação. Por outro lado Steiner e as Escolas
Waldorf, nascidas de sua
obra, insistem no desenvolvimento da
intuição e no que agora chamamos educação transpessoal. Mais recentemente, o
Movimento do Potencial Humano induziu a experimentação na educação do “âmbito
afetivo”. A Educação Holística se propõe a reunir todas essas vozes dispersas,
como projeto que pretenderia abarcar a
totalidade do indivíduo: corpo, emoções, intelecto e espírito.
Apesar de poder chamar-se holística no
sentido de pretender educar a pessoa inteira, creio que a educação deveria ser
holística também em outros aspectos: por exemplo, por perseguir uma integração
dos conhecimentos, por seu interesse a integração intercultural, por sua visão
planetária das coisas, por seu equilíbrio entre teoria e prática, por colocar a
atenção tanto no futuro como no passado e no presente. Um assunto
particularmente crítico há de ser, naturalmente, o equilíbrio dos aspectos “paternos”,
maternos” e “filiais” do indivíduo. Por isso inclino-me a falar de “educação
integral” em referência ao holismo educacional que está surgindo, e ao que pessoalmente
me vinculo.
Enquanto nos EUA as coisas foram
evoluindo desde a “revolução da consciência” até o conservadorismo crescente da
década de oitenta, a idéia de uma educação integrativa e compreensiva pode
deparar-se com a pergunta de se acaso isto não constitui um luxo. Sem referir-se
especificamente à educação, por exemplo, Yankelevich escreveu em seu livro, publicado
recentemente, New Rules, que a situação mundial está se tornando tão crítica e
a situação individual vai tornar-se tão difícil, que já não é tempo de
continuar buscando a “autorealização”. Os dias do Movimento do Potencial
Humano, segundo ele, devem ser considerados como coisa do passado, como reflexo
da situação da abundância transitória que existia quando surgiu.
Creio que devemos nos guardar de
semelhante ponto de vista, que não é mais que uma regressão à atitude
excessivamente prática e “realista” que está na origem da problemática atual.
É precisamente a urgência dos problemas
com os quais nos vemos hoje em dia confrontados como espécie, o que converte em
imperativo, e não em um luxo, o acometer sob um novo enfoque a tarefa
educativa. Como dizem Botkin e outros em seu Informe ao Clube de Roma No Limits to
Learning1:
“Depois
de uma década discutindo temas gerais, alguns sinais de mudança se fazem notar
nos debates. A maioria dos participantes em extensas conferências centradas em propor
novos modelos de construção do mundo sentiu que faltava nos diálogos um elementar
sentido crítico. A preocupação pelo aspecto material da problemática mundial havia
diminuído efetividade nas considerações. Agora se faz evidente uma nova preocupação:
a de voltar a colocar o ser humano no centro dessa problemática. Isto supõe uma
mudança, no sentido de deixar de considerar os problemas globais como manifestações
de problemas físicos de sobrevivência material (Life Support Sistem), para começar
a aceitar a importância proeminente do aspecto humano de tais problemas”.
Estes escritores falam da “brecha”
(Human Gap) com a qual se vê enfrentado o ser humano – a distância entre a
crescente complexidade dos problemas e sua capacidade para lhes fazer frente –
e acreditam que essa brecha pode ser preenchida utilizando-se como ponte a aprendizagem:
“A
aprendizagem, neste sentido, vai além de ser um tema geral a mais. O fracasso neste
campo constitui atualmente, de um modo fundamental, o tema central da problemática
mundial. Em resumo, aprender se converteu em um assunto de vida ou morte.”
Eu prefiro, pessoalmente, insistir no
“desenvolvimento” e dizer que continuamos como lagartas, recusando-nos a nos
convertermos em borboletas, acabaremos destruindo nosso meio ambiente e
devorando-nos uns aos outros. Falando de outro modo, não podemos nos permitir continuar
deixando de lado, como mera possibilidade, essa transformação do ser humano que
se deu de fato em outras épocas. O que em outros tempos foi só destino de uns
poucos e pode parecer um luxo no passado, agora se apresenta com
características de urgência coletiva. Hoje[1]
em dia o crescimento do poder de que pode dispor o ser humano amplifica os
efeitos das falhas que comete em seu exercício, e as conseqüências resultam
inevitáveis para uma população que ameaça superar os limites da capacidade do
planeta. Em tudo isto, não podemos deixar de ver a expressão de uma psique
desenvolvida só de um modo muito incompleto.
A psicologia do ser humano ordinário – a
psicologia que tenderíamos a chamar “normal” – é, psicanaliticamente falando,
regressiva. Sob a capa de pseudo-abundância que mostramos ao mundo, e com a
qual talvez nos identifiquemos, nossa motivação brota geralmente do que nos falta:
somos cobiçosos, sentimo-nos insatisfeitos, dependentes. Em outro tempo, nos
tempos de nossos antepassados Cromagnon, éramos canibais, porém a julgar pela
marcha dos assuntos internacionais continuamos sendo implicitamente. Os gastos
militares do mundo em 1979 excederam a quantidade de bilhões de dólares por
dia, e em anos posteriores, em que a escassez e a superpopulação se tornaram
mais ameaçadoras, não fizeram mais que aumentar. Isto seria necessário se não
fôssemos a nível inconsciente uma sociedade paranóide e
canibalística? Não seria razoável
dedicar esta soma a um programa de restauração da terra, que incluísse como
mais urgentes as necessidades de atenção ecológica e de desenvolvimento da consciência?
Nossa vida coletiva, já na aurora da
pré-história, conheceu metas que estimularam nossos antepassados a evoluir,
porém também traumas que nos precipitaram em um “abismo” de patologia
psicossocial. A motivação carencial – e a conseqüente exploração do próximo, da
natureza e de si mesmos que dela se deriva – perpetuou-se por contágio,
infectando uma geração após a outra, o psiquismo dos seres humanos que nos
precederam, de modo que atualmente nos vemos empurrados por ela para um
iminente naufrágio, do qual só poderemos nos salvar se soubermos nadar, e
utilizo a metáfora de “nadar” para nomear a nova consciência capaz de nos
deslocar “daqui” para ”lá”, do condicionamento milenar e obsoleto de que
estamos padecendo, frente a uma nova ordem mundial.
Longe de constituir um luxo, uma nova
educação – uma educação da pessoa inteira para
um mundo total – é uma necessidade
urgente, e é também nossa maior esperança: todos os nossos problemas se
simplificariam enormemente só com o poder alcançar uma verdadeira saúde mental,
já que esta traz consigo uma autêntica capacidade de amar. Como dizia
Krishnamurti há
anos atrás, “a paz individual é a base
sobre a qual se assenta a paz do mundo”.
Hoje, no entanto, vive a maior parte das
pessoas que formaram parte de uma geração de buscadores talvez só comparável à
daqueles que conheceram os primeiros tempos do cristianismo ou o surgimento de
outras grandes religiões. Este fenômeno cultural, que explodiu nos Estados
Unidos há uns trinta anos, atravessou um período de expansão entusiasta e outro
de apagamento desencantado, e isto reflete a estrutura de um processo
psicológico. Passado todo aquele bem conhecido entusiasmo ao iniciar o caminho,
quando parecia que logo o mundo inteiro estaria transformado, uma fração
considerável daquela juventude norte-americana avançou até a igualmente bem
conhecida etapa de dar-se conta que – como Gurdjieff costumava
dizer – “no começo são rosas, rosas,
rosas; em seguida, espinhos, espinhos, espinhos”. Toda uma geração, praticamente
falando, embarcou naquela busca; não obstante, até agora não temos visto como
resultado uma sociedade transformada, mas somente um punhado de aprendizes de
bruxo em diversos graus de desenvolvimento: indivíduos só aparentemente transformados,
que têm alguma contribuição a dar a partir de sua experiência e que agora sabem
que a viagem é muito mais dura e longa do que haviam pensado.
Se for tão difícil transformar um
adulto, pode resultar mais proveitoso começar com os jovens. Se pensarmos em termos
de uma perspectiva global, tendo em conta as necessidades mais vitais que nos
acossam como habitantes desta terra, a educação, e em particular toda ajuda que
possa ser prestada ao crescimento dos indivíduos humanos durante sua etapa de
maior plasticidade, sobressai dentre todas as estratégias possíveis como a mais
adequada para poder intervir conscientemente em nossa própria transformação
evolutiva. Certamente, é também a mais econômica, em um tempo onde o fator
econômico é crucial.
Hitler descobriu, em seu momento, que
controlando a educação podia controlar a sociedade. Poderíamos resgatar a
verdade que se esconde nesta percepção, assentando-a sobre uma base verdadeira,
pois não é através de um “controle” que poderemos alcançar o fim que perseguimos,
mas através de atitudes de atenção, habilidade e afeto, e mais que nada pela qualidade
do próprio ser. Somente dotando os jovens da possibilidade de converterem-se em
seres humanos completos podemos esperar um mundo melhor. Se temos que
“controlar” a educação, necessitamos entender que este controle deve colocar-se
a serviço da liberação dos indivíduos – na realidade, seria um contra-controle.
Para muitos de nós é familiar o slogan:
“Formar os homens que a pátria necessita”. Se atentarmos ao sentido implícito
desta expressão, formação aqui vem a ser sinônimo de socialização em termos
gerais, quer dizer, educação concebida como veículo de condicionamento social.
Porém se falamos de formar homens que o mundo necessita, devemos admitir que
então, necessariamente, não se tratará de educar a partir e para o conformismo,
mas para a liberdade e autonomia, pois um “mundo” verdadeiro só será possível
se contar com autênticos indivíduos.
Escrevendo depois de Darwin, Herbert
Spencer comparava a sociedade a um organismo – idéia que geralmente deixaram de
lado os sociólogos posteriores. Realmente, nossa sociedade dista muito de ser
um organismo, e nisto temos avançado menos que as abelhas e as formigas.
Uma sociedade que fosse com respeito ao
indivíduo o que o cérebro é para as células que o constituem, teria que
cimentar-se na existência de seres humanos maduros, isto é, seres integrados e
em vias de auto-realização, e não essa espécie de robôs humanóides que a partir
de sua cegueira e outros males fomenta nossa sociedade. Pode-se dizer que uma
educação orientada para o indivíduo inteiro está por si só orientada para uma
totalidade mais vasta, é “uma educação para um mundo unificado”, e quis pôr em
relevo esta idéia incluindo-a no título deste capítulo. Em primeiro lugar para
sublinhar a tese de que “uma educação da pessoa inteira é uma educação para o
mundo total”, e também pelo quão saudável pode resultar o acentuar
especificamente a finalidade metapessoal. Além disso, esta é uma idéia
inspiradora: se nos tornamos conscientes do quanto necessitamos de uma educação
orientada para a paz e para a unidade mundial, talvez essa consciência possa suscitar
a capacidade de contribuição criativa correspondente a esta finalidade. Um
indivíduo não pode verdadeiramente considerar-se completo se carece de uma
visão global do mundo, se não possui um sentimento de irmandade. Necessitamos
uma educação que leve o indivíduo até este ponto de maturidade e no qual,
elevando-se acima da perspectiva isolada do próprio eu e da mentalidade tribal,
alcance um sentido comunitário plenamente desenvolvido e uma perspectiva planetária.
Necessitamos uma educação do eu como parte da humanidade, uma educação do sentimento
de humanidade.
O despertar espiritual que forma parte
de nosso destino potencial não supõe somente o nascimento do “eu”, mas também o
parto do “tu”. O nascimento do Ser supõe o nascimento do eu-tu, o dar a luz do
sentido do “nós”.
Como a educação pode contribuir para
criar o sentido do nós? Não somente através de uma atitude distante de todo o
bairrismo e aberta para uma visão universal das coisas, mas, antes de tudo e
sobretudo, por meio de uma capacitada aplicação de técnicas de liderança comunitária,
isto é, prestando uma assessoria experimentada acerca dos processos de formação
de grupos no verdadeiro sentido da expressão.
Para Carl Rogers, os grupos são
possivelmente o invento mais significativo do presente século. O futuro dirá.
Porém em todo caso, constituem um recurso muito importante, e creio que todo
educador deveria adquirir um repertório de habilidades que incluem, entre
outras, a capacidade de facilitar uma comunicação sincera entre seus alunos –
responsabilizando-se por suas conseqüências -, a capacidade de reconhecer e expressar as
próprias percepções, tanto de si mesmo como dos outros, e a de desenvolver sua
própria empatia e manter-se afastado dos jogos do ego. Este processo não
deveria, entretanto, limitar-se à celebração de grupos de encontro ou outros de
índole semelhante, mas constituir melhor o contexto de uma situação educativa.
Existem duas classes de grupo que por representar outras tantas formas
poderosas de atividade comunitária quero sublinhar especialmente. Um é o grupo
de tarefas, que oferece uma situação ideal para a aprendizagem do trabalho em
colaboração assim como para desenvolver a consciência de tudo o que a
dificulta. O outro, os grupos de tomadas de decisões, que além de oferecer aos
participantes um claro reflexo de seu caráter, constituem talvez o instrumento
mais fundamental de que dispomos em direção a uma educação para a democracia.
Ao aplicar todos esses recursos, devemos
ter presente que, na situação que atravessamos, crescimento e cura são
inseparáveis. Só artificialmente cabe separar o campo da educação do da
psicoterapia e das disciplinas espirituais, pois realmente não existe mais que
um único processo de crescimento-cura-iluminação. O tabu que se opõe à
introdução da psicoterapia na educação deve ser entendido como o sintoma
regressivo e defensivo que é na realidade: se continuarmos desatentos ao campo
afetivo na educação, continuaremos devolvendo ao mundo indivíduos fixados em
pautas infantis de conduta, sentimento e pensamento e, certamente, estaremos
nos afastando do objetivo de educar as pessoas para que possam desenvolver-se
em plenitude.
Depois de haver dito com tanto luxo de
palavras que, em verdade, chegou a hora de pôr em prática a idéia de uma
educação integral, quero agora expor, mesmo que parcialmente, qual é minha
visão do que poderia ser a educação do futuro. E ao começar a fazê-lo, não
posso deixar de recordar o ensaio que Aldous Huxley dedicou ao tema: “Sobre a
educação de um anfíbio”. As observações e sugestões que seguem não são outra
coisa que uma atualização do convite pioneiro que Huxley lançou em prol de uma
educação holística há mais de trinta anos.
Não é preciso dizer que a nova educação
será dirigida ao corpo e às emoções, à mente e ao espírito. Porém de que
maneira e valendo-se de que instrumentos?
Com respeito à educação física, sabemos
hoje em dia o suficiente para reconhecer que à parte o treinamento desportivo e
outros meios de manter uma adequada forma física, existem outras formas mais
sutis de trabalho corporal. É o campo do que o Dr. Thomas Hanna designou como
“Novas Somatologias”. Poderíamos falar de um trabalho corporal externo e
interno, seguindo a aplicação que destes termos se faz nos esportes. O novo que
é preciso adicionar à educação física tradicional tem a ver com a atitude e a
atenção, e, além disso, isto seria aconselhável incorporar ao currículo algumas
formas de treinamento sensório-motor. Podem resultar excelentes e apropriadas,
não somente certas técnicas de trabalho com base no movimento corporal, como a
da “Autoconsciência pelo Movimento” de Feldenkreis, a “Eutonia” de
Gerda Alexander ou a educação
psicomotora relacional, com também outros enfoques mais tradicionais como o
Hatha Yoga e o Tai Chi Chuan.
Outro campo, relacionado também com a
vertente física do complexo humano, e também necessitado de atenção, é o
relativo ao que poderíamos chamar destrezas, seja no campo do cuidado
doméstico, da arte culinária ou do artesanato em geral. Se o lado psicopatológico
interfere com a capacidade de mobilização para cumprir qualquer tarefa, é claro
que o cultivo de uma atitude saudável com respeito à própria atividade possui
um indubitável valor terapêutico. O trabalho manual oferece também uma ocasião
valiosa para desenvolver virtudes profundas como são a paciência e a capacidade
de auto-satisfação, só com que se nos saiba fazer captar o valor interior que esconde
qualquer forma de arte e aprendamos a usar a situação exterior para o próprio
crescimento como pessoa.
Passemos agora para a educação dos
sentimentos. Em primeiro lugar, temos que dizer que resultaria artificial
separar demasiado a educação afetiva do que pertence à educação das relações
interpessoais e, igualmente, tampouco podemos separar do todo o campo afetivo interpessoal
do tema do autoconhecimento. Segundo isto, quero assinalar que tudo o que está contido
sob a rubrica da educação interpessoal, chame-se autoconhecimento, auto-estudo
ou autocompreensão – esse alto ideal ardentemente assumido e predicado por
Sócrates -, é algo que os atuais modelos educativos marginalizam sistematicamente
em tempos que contamos com recursos suficientes para fazer de outro modo. É
hora de contar em nossos currículos com laboratórios de comunicação humana
modernamente concebidos onde se fomente e facilite a capacidade de
autocompreensão, em um contexto de conscientização interpessoal e aprendizagem
comunicativa, partindo dos muitos recursos disponíveis hoje em dia, desde o exercício
de livre associação que Freud introduziu, até os últimos refinamentos surgidos
dentro do movimento humanístico.
Certamente, necessitamos desenvolver, se
não recobrar, a capacidade de identificar os próprios sentimentos, assim como a
de expressá-los de forma autêntica e adequada. Não podemos nos permitir passar
desatenta a contribuição que representam as técnicas de dramatização e, mais
geralmente, de expressão para o desenvolvimento da vida emocional. Também é
importante neste aspecto um recurso procedente da concepção liberal da
educação: o contato com o patrimônio literário e artístico do mundo inteiro,
feito com o guia apropriado, constitui um legado recebido de coração a coração,
assim como a ciência e a filosofia são uma herança que se transmite de mente a
mente.
O mais importante que tenho a dizer, não
obstante, com respeito à educação no campo afetivo, poderia ser a necessidade
que temos de reconhecer que seu objetivo central é o desenvolvimento da
capacidade de amar.
Não cabe a menor dúvida de que a saúde e
todas as suas virtudes naturais concomitantes são inseparáveis da capacidade de
amar-se a si mesmo e amar aos outros. Assim, pois, temos necessidade de uma
pedagogia do amor. Contamos com informação suficiente para poder desenvolvê-la;
talvez o que estava faltando era um sentido de direção e a ocasião para aplicá-la
em um contexto educativo. Sabemos, por exemplo, que apesar da necessidade de proporcionar
calor, compreensão e segurança psicológica, e dar também ocasião para desenvolver
o sentimento comunitário, é necessário ocupar-se adequadamente da ambivalência infantil
com que cresce a maioria das pessoas em nossa sociedade como resultado
inevitável de ter tido como pais seres que foram tudo menos emocionalmente
maduros, felizes e produtivos. O potencial amoroso do indivíduo permanece
velado por seu ódio a si mesmo e por sua destrutividade, consciente ou
inconsciente, coisas todas surgidas em sua mais tenra história. Liberar-se delas,
como a estas alturas demonstra claramente a experiência psicoterapêutica, exige
alcançar uma compreensão intuitiva mais que puramente intelectual no re-exame
da própria vida, e ventilar toda a dor e frustração associadas às impressões do
passado para assim poder soltá-los. Certamente, tudo isto requer normalmente um
longo processo psicoterapêutico, todavia, ainda assim, hoje em dia pode ser
realizado em um tempo muito mais curto do que na época dominada pela
investigação psicanalítica.
Eu creio que tudo isto se deve em grande
parte ao tabu existente no campo educativo com respeito ao terapêutico, assim
como com respeito ao tema religioso. Estima-se que o campo educativo deve ser
distinto e não deve ser invadido por estes outros campos. É uma concepção um
pouco territorial, inundada na realidade por complicações compreensíveis, como
as que se produzem quando uma criança começa a falar no colégio de coisas que
se passam em casa. Estas
não são coisas que se possam manejar a nível local, a nível do próprio colégio.
Os professores, os diretores escolares, inclusive os burocratas da educação,
necessitariam contar com um apoio muito mais forte para poder tomar a
iniciativa de implantar na escola elementos que formam parte da metodologia –
da tecnologia poderíamos dizer – de que hoje dispomos para desenvolver e/ou
sanar as relações afetivas. Se a crise que padecemos é antes de tudo uma crise de
relações, uma crise em relação com a capacidade amorosa do ser humano, não
podemos continuar mantendo essa separação entre o terapêutico e o educativo,
nem podemos continuar identificando educação com uma instrução freqüentemente
irrelevante.
Talvez o recurso procedente do campo da
Psicologia Humanística que mais se tentou aplicar no contexto educativo, ao
menos nos Estados Unidos, foi o enfoque gestáltico (com o nome de “educação
confluente”). George Brown, professor de educação no campus de Santa
Barbara da Universidade da Califórnia, e
também gestaltista, conseguiu o apoio do Instituto Esalen e da Fundação Ford há
mais de vinte anos, e esteve distribuindo formação gestáltica a educadores de
um modo sistemático em todos estes anos, não tanto com a intenção de converter
a terapia gestáltica em uma parte adicional do currículo, mas com o objetivo de
dotar os professores de uma maior capacidade de aproximação experiencial da
verdade, de uma maior compreensão da condição humana, e uma maior habilidade de
manejar-se como pessoas frente
a outros seres humanos – tudo o que
supõe estar trabalhando no terreno fronteiriço entre o terapêutico e o
didático. Creio que a Gestalt merece ser recomendada como um recurso de primeira
ordem pela economia que representa: um contato ainda que breve, com a Gestalt
pode aumentar na pessoa este tipo de habilidades, ao desenvolver-lhe a
capacidade de estar aqui e agora. A maioria das pessoas vive sob um implícito
tabu que as impede de expressar o que está acontecendo no momento, de modo que
quando adquire a capacidade de tornar-se mais consciente e de assumir a
responsabilidade de sua experiência no aqui e no agora podem surgir mil coisas
novas. Esta é uma liberação impregnada de conseqüências. Quando alguém pode interromper
o que está acontecendo a nível discursivo para dizer, por exemplo, “Algo me
cheira
mal”, ou “Me sinto incomodado”, “Esta
situação está me aborrecendo”, deslocando assim a comunicação ao nível
interpessoal, é possível superar muitos estancamentos estéreis.
Algo semelhante poder-se-ia dizer da
A.T. (Análise Transacional), do Psicodrama, e de outras diversas terapias
contemporâneas. Mereceriam formar parte de um mosaico ideal de experiências e
contribuiriam tanto para o processo de desenvolvimento pessoal como para a formação
profissional dos educadores. Porém ao sonhar com uma possível educação do
futuro, quero sublinhar muito especialmente o enorme potencial que encerra para
a educação um enfoque terapêutico, todavia não muito conhecido nem sequer no
âmbito da terapia e que se conhece com o nome de Processo Fischer-Hoffman. Não
se originou no mundo acadêmico, mas no espiritual, e lhe concedo uma singular
relevância como remédio frente aos males patriarcais, pois constitui um método
especificamente dirigido para conseguir a integração do “pai”, da “mãe”
e o “filho” dentro do indivíduo. Também
é conhecido com o nome de “Processo da Quadrinidade”, por perseguir a
harmonização do corpo, das emoções, intelecto e espírito do indivíduo. Há mais
de dez anos, em um dos congressos internacionais de Gestalt realizado nos Estados
Unidos, eu o recomendei como algo sumamente apropriado para a formação de gestaltistas
e em geral como instrumento recomendável na formação de qualquer tipo de terapeutas.
Porém creio que o principal potencial deste método está no campo educativo. Consegue
com relativa facilidade plantar em pouco tempo uma semente de cura no que
constitui
a especialidade deste método: o campo
das relações do indivíduo com seus pais estejam estes vivos ou mortos. A idéia
é a mesma do quarto mandamento, já que o desamor, a ambivalência amorosa em
relação aos pais, a agressão consciente ou reprimida contra eles, perturba
todas as relações da pessoa com o mundo, e é o que (para usar a linguagem
psicanalítica) está por trás da “compulsão de repetição”, o transferir
interminavelmente para o presente atitudes aprendidas no passado. Ao se
restabelecer o vínculo amoroso com os pais (um vínculo amoroso que a maior parte
das pessoas nem sequer suspeita de haver perdido) se restabelece a
possibilidade de outro nível de amor por si mesmo e, por extensão, pelos
demais.
Se quisesse dizer que aspecto estaria
mais necessitado de reforma dentro do âmbito da educação do intelecto, seria
necessário apontar para algo bem diferente de tudo quanto se revisa e se
apresenta de ano para ano nos inumeráveis congressos de educação a nível
nacional e mundial, e ao qual se dedicam enormes somas. Tanto nos Estados
Unidos como em outros países, investem-se milhões de dólares em reformas
educativas que não tratam senão de reformar o currículo, a maior parte das
vezes com base em simples variações sobre os mesmos temas. O que se necessita
não é tanto modificar quanto condensar de um modo significativo o currículo
tradicional, com base em uma séria tarefa de seleção que apenas se começou a
realizar, e implantar o que eu chamaria uma ética de economia tanto de
recursos, como do tempo dos estudantes, de modo que a situação escolar possa
ser usada em proveito da criança de um modo mais frutífero a partir de uma
perspectiva mais atenta aos valores humanos.
Caberia esperar que com respeito à
vertente cognitiva da educação, haveria menos a dizer ou fazer em prol de sua
possível melhora, já que até agora a educação veio se centrando quase que
exclusivamente neste aspecto. Não obstante a educação, em seu aspecto
intelectual necessita ir muito mais além da mera transmissão de informação,
tanto se o objetivo é compreender melhor o mundo como se o que se pretende é
capacitar o indivíduo para levar a cabo tarefas especializadas.
O estender a educação além dos conteúdos
cognitivos, segundo estou sugerindo, nos confronta com a necessidade de
desenvolver a vertente informativa da escola de um modo muito mais eficiente do
que se vem fazendo até agora, simplesmente porque haveria muito menos tempo
para dedicar-se a isto. Necessitamos aproveitar ao máximo todo o potencial que
encerram os puzzles e os jogos, que constituem um meio ideal para a
aprendizagem precoce das matemáticas, estender toda a riqueza dos recursos audiovisuais,
explorar as possibilidades dos organizadores, etc. Creio
que, antes de tudo necessitamos o que se poderia chamar uma ética de brevidade:
não podemos permitir sobrecarregar a capacidade de armazenamento de nossos cérebros
com informações detalhadas sobre coisas ou aspectos não essenciais, mas devemos
nos concentrar ao máximo em questões realmente significativas, seja com respeito
à visão do mundo ou relativas à própria vocação ou preparação para o serviço no
seu meio. A sede de compreensão faz parte da natureza humana e necessita
alimentar-se de uma visão panorâmica do conhecimento. Seria, pois, aconselhável
e sábio pôr em obra um tipo de educação que unisse um equilíbrio entre
generalismo e especialização; isto é, uma educação capaz de promover habilidades
específicas sobre uma base de conteúdo geral. Isto em si implicaria uma certa educação
do chamado pensamento integrativo.
O que o panorama atual mostra como
insuficientemente recalcado na educação tradicional é o desenvolvimento de
habilidades cognitivas, como tais, mais além dos conteúdos da aprendizagem.
Além de aprender, precisamos, sobretudo, aprender a aprender. Inclusive se adotamos
uma atitude mais pragmática que humanista, chegamos à mesma conclusão. “A quantidade
de conhecimentos que alguém adquire em uma área qualquer de conteúdo não tem relação,
em geral, com um melhor desempenho da ocupação correspondente”, escreve o professor
Kilpatrick no Boletim da AHHP (Architectural History and Historic Preservation
Division). “A maioria das ocupações só requerem que o indivíduo esteja disposto
e seja capaz... O que distingue o indivíduo eficaz no desempenho de sua função
não é tanto a aquisição nem o uso de conhecimentos, mas as capacidades
cognitivas desenvolvidas e exercitadas no processo de aquisição e emprego
desses conhecimentos”. Aqui também necessitamos mudar nosso foco do externo
para o interno, do aparente para o sutil.
Para o desenvolvimento das capacidades
cognitivas existem novos recursos que a educação poderia incorporar hoje em
dia, instrumentos que vão desde os exercícios de pensamento lateral De Bono e o
treinamento da análise das pressuposições implícitas[2],
até o pensamento dialético e a educação não-verbal de Feuerstein e outros.
Quero destacar, não obstante, dois deles que, ainda não sendo novos, não devem
por isso cair no esquecimento. Refiro-me em primeiro lugar às matemáticas. Esta
é uma área de conteúdos de extraordinário valor na educação do raciocínio como
tal, como bem sabiam os educadores do passado. Se aspiramos conseguir um
equilíbrio entre os hemisférios direito e esquerdo do cérebro, temos que ter
muito cuidado para não descartar as matemáticas como se se tratasse de um
exercício acadêmico próprio do passado, tal como parece inclinada a pensar a
nova cultura centrada no hemisfério direito. Em segundo lugar, refiro-me à
música. Toda expressão criativa, através do meio que seja, pode ser considerada
como um meio para desenvolver a intuição, porém entre todas elas, a música se
sobressai, como de modo semelhante, entre todas as ciências sobressaem as
matemáticas. A música, como disse, Polanyi, é “matemática sensível”, e pode fazer
por nosso cérebro intuitivo o que as matemáticas podem fazer em favor do nosso
cérebro racional. Neste aspecto, pode ser que tenhamos algo que aprender com os
húngaros que, sob a direção de Zoltan Kodali, há algumas décadas, foram os
pioneiros no campo da educação musical e na observação de seus benéficos
efeitos sobre as crianças, com resultados mensuráveis quanto ao desenvolvimento
de sua inteligência. Existem também outros recursos disponíveis neste sentido,
dos quais poderiam tirar partido nossas escolas, tais como o sistema Orff e a
Eurritmia de Dalcroze.
Outro aspecto de uma educação centrada
no desenvolvimento da capacidade amorosa é o transpessoal ou espiritual. A
metade do quanto podemos fazer neste aspecto consistiria em promover o
desmoronamento do “ego”, ensinar a transcender o próprio caráter e oferecer
ajuda para atravessar o processo de liberação dos obstáculos interiores. A
outra metade deveria centrar-se no cultivo daquelas qualidades que constituem o
objetivo de toda forma de meditação, pois é bem sabido, e assim o predicam
todas as religiões, que o amor flui naturalmente da experiência mística.
Isto se enlaça com o tema da educação
transpessoal, isto é, a educação deste aspecto da pessoa que está além do
corpo, da mente e das emoções, e ao que tradicionalmente se dá o nome de
“espírito”. Começarei por referir-me à questão controvertida de se a religião
deve ou não ser ensinada em sala de aula. Houve um tempo em que a religião era
uma matéria obrigatória. Logo, a educação secular reclamou sua independência
frente à igreja, e isto supôs um passo avante no desenvolvimento da sociedade
moderna. Porém uma coisa é tornar-se independente da autoridade de uma
determinada hierarquia religiosa, e outra é o tema da educação espiritual. A
vertente religiosa é um aspecto da natureza humana, e nenhuma educação pode
pretender chamar-se holística se não a toma em consideração. O
espírito de nossa época não se dispõe já com inculcar nenhum tipo de dogmas nem
com atitudes individualistas: chegou a hora de um enfoque transistêmico e
transcultural no campo do espírito. Como uma vez escutei dizer ao bispo Myers
de San Francisco em uma reunião de prospectiva “Não podemos nos permitir menos
do que nos tornarmos herdeiros do acervo cultural completo da humanidade”. O
que necessitamos, obviamente, é uma “aula de religião” onde se apresente a essência
dos ensinamentos espirituais do mundo inteiro e que enfatize a experiência
universal comum que todas elas simbolizam, interpretam e cultivam de maneiras
diferentes
Quero também tocar na questão de quando
uma criança deve ser iniciada no ensinamento religioso. Existem certas
práticas, dotadas de um significado espiritual em certo modo equivalente ao da
meditação, que resultam apropriadas para
crianças pequenas, como são o contato com a natureza, as artes, o artesanato, a
dança, o trabalho corporal, e, sobretudo, a narração de histórias e a fantasia
dirigida. Não obstante, em minha opinião, a época ideal para começar a educação espiritual explícita é
na puberdade, e não antes, a menos que nos proponhamos a levar a cabo uma
lavagem cerebral. As culturas primitivas que, como bem sabemos hoje, podem
estar espiritualmente muito evoluídas, costumam introduzir seus membros nos
símbolos e revelações de sua tradição por ocasião de um rito de iniciação na
adolescência e na vida adulta. Antes disso, os assuntos religiosos são tratados
como mistérios para os quais haverão oportunidades e guias adequados para
quando for o momento. Creio que esta prática, muito propagada, encerra
sabedoria, já que é na adolescência que surge a paixão pela compreensão
metafísica, que converte muitos jovens em filósofos naturais. O que é mais importante:
a adolescência marca o começo do anseio, o despertar da energia que move o buscador
em seu caminho. Este é, portanto, o tempo biologicamente adequado para falar ao
indivíduo em crescimento acerca da “viagem” e de seu objetivo, e acerca das
ajudas, dos veículos, os instrumentos e os talismãs de que pode dispor.
É desnecessário dizer que uma autêntica
educação espiritual não deveria limitar-se ao terreno teórico, pois os
ensinamentos espirituais oferecem um contexto adequado para a prática. Se há de
figurar no currículo uma “aula de religião”, esta deveria ser complementada por
uma introdução vivencial às disciplinas espirituais, por uma espécie de
“laboratório de religião” que incluiria uma introdução à meditação e outras
práticas semelhantes, de modo que o indivíduo, ao deixar a escola, estaria
dotado das ferramentas básicas necessárias ao seu próprio progresso espiritual
na vida cotidiana.
Terá que transcorrer algum tempo antes
de poder contar com indivíduos capazes de montar uma aprendizagem relativa às
disciplinas espirituais baseada na experimentação e desenhada a partir da
perspectiva transcultural e integral. Entretanto, a melhor opção pode ser oferecer
aos estudantes um período de tempo durante o qual possam “provar” entre uma
seleção das principais disciplinas espirituais concebidas de acordo com os
elementos naturais e objetivos de todo ensinamento espiritual e com os aspectos
do processo psíquico implicados nela. É claro, por exemplo, que uma forma
natural de iniciar um programa semelhante poderia basear-se na prática da
concentração, já que todas as formas de meditação, de culto e de reza descansam
na capacidade de concentrar-se devidamente.
Mesmo que este tema, que é um dos meus
campos de especialização, mereça um desenvolvimento muito mais extenso,
basta-me dizer que as variedades existentes de esquemas de prática espiritual
se reduzem, em minha opinião, a uma série de formas puras, ou a uma combinação,
de um número limitado de “ações internas”, e creio que assim como a educação física
requer exercitar as diferentes possibilidades de movimento do corpo, assim
também deveríamos tratar de cultivar as diferentes “posturas psicológicas” que
implica a experiência espiritual; com efeito, esta atitude ótima de consciência
que todas as disciplinas espirituais perseguem como meta, acarreta um estado e
umas experiências multifacetadas, que abarcam qualidades e sensações diversas como
clareza, calma, liberdade, desapego, amor, sacralidade. E ainda que o cultivo
de cada uma destas qualidades constitua por si um caminho, algo se poderia ganhar
através de um enfoque integrativo que, acima do que cada uma delas representa, apontasse
para o objetivo ao qual convergem.
Não obstante as razões de eficácia, um
programa concebido com base na compreensão das dimensões subjacentes a qualquer
tipo de prática espiritual teria a vantagem de conduzir à conciliação
experimental de muitos paradoxos e acabar com a estreiteza mental que supõe discutir
acerca de qual é o caminho “verdadeiro”. Outro fruto adicional seria a
espontânea compreensão da essência de todas as tradições religiosas.
Desenvolvi até aqui minha visão acerca
do que chamo uma educação integral, isto é, uma educação do corpo, das emoções,
da mente e do espírito, que se baseia em uma contemplação equilibrada de seus
diferentes aspectos, e que seja capaz de devolver ao mundo seres capazes de
compreender tal visão e de servi-la com generosidade. Que podemos fazer em favor
de tão nobre iniciativa?
Certamente, a questão decisiva é a
expansão e difusão dessa forma de compreensão. Um maior progresso na
compreensão por parte de todos é suscetível de conduzir a ulteriores desenvolvimentos,
mais criativos que os produzidos até o momento no seio do ensino privado, e isso
já é algo.
Porém o passo seguinte para converter o
sonho em realidade reside, não obstante, na educação dos educadores.
Isto muitos educadores já vêm fazendo
por si mesmos, guiados por um afã de crescimento próprio e amor por sua
profissão procurando novas experiências e informações necessárias através de
distintas formas de educação contínua e autodirigidas. É de se esperar, contudo,
que dentro de não muito tempo os próprios centros de formação de educadores possam
haver assimilado suficientemente a forma holística de compreensão a que nos
referimos, de maneira que no momento de deixar a universidade os professores
tenham desenvolvido, junto com a maturidade e profundidade necessárias, a
perspectiva e a série de habilidades que requer uma educação integral.
À expansão e maturidade da consciência
na população, e de um modo especial entre os profissionais, seguirá de um modo
natural a reforma do sistema educativo oficial: a revolução de hoje é o
“establishment” de amanhã. As instituições sociais possuem sua própria inércia característica,
e o crescimento tem lugar como resultado de ultrapassar tal inércia através da visão
prospectiva: “O poder domesticador do pequeno”, na linguagem do I Ching. O establishment
educativo mereceu ser comparado, por sua inércia, com um elefante branco, e os serviços
que presta resultam obsoletos e irrelevantes até um ponto completamente
injustificável.
A indisciplina escolar, não me resta
dúvida, é neste sentido um fenômeno reativo, uma espécie de greve contra a
inutilidade, uma súplica em prol de uma educação que seja relevante para os tempos
críticos e os problemas reais que devemos enfrentar, uma educação que realmente
possamos considerar sábia e que verdadeiramente nos ajude a sermos melhores.
Confio ter transmitido, através do que
precede, uma certa consciência acerca da negatividade e irrelevância do nosso
atual sistema educativo, patriarcal e anti-holístico com respeito à situação
humana real de hoje em dia, e espero haver deixado claro que este é um tema que
requer uma urgente atenção. Nossa educação é tão absurda como potencialmente “salvadora”.
É absurda até o ponto de que muitos chegaram a falar de desmantelar as escolas como
solução mais adequada (Ivan Illich via no desmantelamento das escolas o passo fundamental
para a grande liberação necessária frente ao autoritarismo em geral). Muitos pensam
que a educação atual não só deixou de cumprir com sua função, mas inclusive,
por omissão nos prejudicou. Ao dizer isto me vem a imagem de um cartaz que apresentasse a foto de um grupo de crianças
cheios de vida, ao lado de outras pessoas em um ônibus, com cara de robôs e
expressão aborrecida, e uma frase embaixo que dissesse: “O que aconteceu?”. Na
hora de encontrar resposta para este processo de adormecimento, de embotamento
das faculdades humanas, não cabe dúvida de que haveríamos de aplaudir à
intervenção de um processo educativo como o atual, tão oposto ao que com ele se
deveria tratar de conseguir.
A situação global que atravessamos me
faz considerar “urgente”, e não somente importante, encontrar uma solução para
este problema, já que, apesar de que a crise que padecemos é conseqüência do
fracasso de nossos planos nas relações humanas, estamos descuidando totalmente
da aprendizagem da dimensão transpessoal no âmbito educativo.
Depois de ter circulado durante muitos
anos a expressão “problemática mundial”, como referência ao grande
macroproblema que engloba todos os problemas que escapam à capacidade de
encontrar soluções dos especialistas isolados, Alexander King, co-fundador do
Clube de Roma, alcunhou em seu livro A Primeira Revolução Mundial, recentemente
publicada, a nova expressão “resolútica”, como contrapartida daquela, e em sua
proposta de uma via complexa de saída para
a situação, destaca junto à da
tecnologia, a importância da educação. Segundo ele, a educação deveria
compreender os seguintes objetivos:
-Adquirir conhecimentos;
-Estruturar a inteligência e desenvolver
as faculdades críticas;
-Desenvolver o conhecimento de si mesmo
e a consciência das próprias qualidades e limitações;
-Aprender a vencer os impulsos
indesejáveis e o comportamento destrutivo;
-Despertar permanentemente as faculdades
criativas e imaginativas da pessoa;
-Aprender a desempenhar um papel
responsável na vida da sociedade;
-Aprender a comunicar-se com os demais;
-Ajudar as pessoas a se adaptarem e a se
prepararem para a mudança;
-Permitir a cada pessoa a aquisição de
uma concepção global do mundo;
-Formar pessoas para que possam ser
operativas e capazes de resolver problemas[3]”.
Pessoalmente celebro e compartilho das afirmações de King, porém
sinto, não obstante, que em sua linguagem de pura objetividade tomado do mundo
da economia, da política e da engenharia, perde-se algo vital substancial: parece-me
significativa a ausência de palavras como
“amor” e “compaixão”. São palavras que
nosso mundo, baseado no desenvolvimento do hemisfério cerebral esquerdo,
considera implicitamente proibidas, de um modo semelhante a como entre os
personagens replicados do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley se considerava
de mau gosto falar da incubadora.
Quero agora me referir ao fato de que
uma das razões por que não se avançou mais até agora, nem sequer na formulação
desses objetivos adicionais que a educação deveria perseguir, é a implícita
convicção de que tentar consegui-los resultaria em um excesso de custos. Parece
natural pensar que uma mudança tão radical em torno dos objetivos da educação –
e não digamos nada quanto aos meios a serem empregados para isto – teria que
supor a correspondente relevância no pessoal encarregado de levá-lo a efeito.
Todavia, acredito que o problema não é
tão insolúvel como parece. A chave definitiva, certamente, se apoiaria em um
modelo diferente de formação dos educadores, que atualmente recebem um excesso
de bagagem intelectual e uma insuficiente educação emocional e espiritual. Por
exemplo, no campo da psicologia se ensina muito a respeito de condutismo porém
nada que realmente ajude a mudar as pessoas; quer dizer, aprende-se a mudar
comportamentos concretos, porém muito pouco a mudar a forma de vida. Por quê?
Porque o condutismo é científico, e como tal só se ocupa do que pode ser
medido.
Uma vez um de meus professores na
Faculdade de Medicina, Ignacio Matte-Balnco, psicanalista chileno emigrado à
Itália há muitos anos, contou-me de um amigo seu que havia desejado estudar
medicina porque lhe atraía como vocação ocupar-se do ser humano, compreender a
mente humana. Com o tempo chegou a dar-se conta do quão impossível era pretender
construir uma autêntica ciência da mente e, por fim, dedicou sua vida ao estudo
da transmissão dos impulsos nervosos e a polarização da membrana do eixo
neuronal do calamar. Creio que a todos nós aconteceu algo assim: que por sermos
científicos limitamos o campo de nossos interesses ao que a ciência pode
abarcar e medir, ficando assim presos em um dos jogos patriarcais, o
cientificismo, que não é, certamente, o mesmo que a ciência, mas apenas uma caricatura
do espírito científico.
Trago para a discussão o tema da
economia a este respeito, porque estou convencido de que essa necessária
mudança de orientação da educação é possível, está facilmente ao nosso alcance
e seria muito menos custoso do que podemos imaginar. Só contando com o
suficiente grau de consciência, seria uma revolução tão alcançável como o
simples gesto de girar um interruptor. Basta fazer uma analogia com a Revolução
Francesa, onde uma mudança radical de orientação na educação (de uma visão
humanista para uma concepção científica) pode ser levada a efeito só porque
houve um governo forte que decidiu fazê-la. “Bem, – disseram as autoridades
–vamos atrair os cientistas para as escolas”. As pessoas que entendiam de
ciência eram aqueles que andavam metidos nos laboratórios, como Lavoisier e
seus discípulos. Era a época do nascimento da ciência e foram atraídos para as
escolas, para ensinar, pessoas que não tinham experiência pedagógica, mas que
tinham muito a comunicar.
Acredito que agora se deveria fazer algo
semelhante: dar um espaço limitado para as matérias que atualmente formam o
currículo (na realidade, a maior parte do quanto aprendemos, aprendemos fora do
meio escolar), condensar boa parte do que hoje em dia se faz nas escolas, e dar
espaço para pessoas que estiveram se ocupando de seu próprio e mais elevado desenvolvimento
interior, gente envolvida no crescente movimento experiencial terapêutico e espiritual
que floresce ao nosso redor. Estas duplas vertentes de busca, psicológica e
espiritual, respondem à sede de respostas despertada no homem na mesma medida
em que a cultura – esta nossa cultura patriarcal, não só já obsoleta e em
crise, mas agonizante – deixou de dá-las. Já Nietzsche, proclamou que Deus
estava morto, porém referia-se na realidade à imagem que as pessoas faziam de
Deus em suas mentes; essa imagem, tão ligada à mentalidade patriarcal, sim, morreu.
Para que renasça o espírito é necessário falar outros idiomas, abrir-se de novo
para a sede e deixar de sentir-se alheios a esta reocupação tão humana. E isto
está ocorrendo à nossa volta nestes tempos. De um modo especialmente genuíno,
esta busca e esta preocupação foi caracterizando os diversos grupos e
tendências englobados no seio da Psicologia Humanista, nascida nos Estados
Unidos como “Movimento das Potencialidades Humanas” nos anos sessenta, e
desenvolvida mais tarde sob o nome de Psicologia transpessoal, que bem poderia
ser considerada um novo xamanismo emergente. Trata-se de um processo contagioso o que transborda por sua própria
dinâmica o marco do acadêmico, mais além de sua inegável e vigorosa capacidade
de fecundá-lo. Creio que dentro desse movimento
geral caberia recrutar um número suficiente de educadores psicoespirituais e as
instituições educativas teriam que lhes dar espaço desde já em seu seio, mesmo
em caráter experimental e complementar. Isto inicialmente, já que a mudança
ideal e definitiva haveria de requerer, como é lógica, uma nova educação dos educadores:
a vida só procede da vida, e a maturidade somente de pessoas que por sua vez já
amadureceram, sobretudo quando o que se trata de transmitir é uma formação
integral e estritamente humana.
O que se acha de menos nas escolas de
formação de educadores hoje em dia é a capacidade de dotar os professores e
mestres de toda série de habilidades e conhecimentos no âmbito terapêutico e no
espiritual, quando, em minha opinião,
seria relativamente pouco custoso incluir estes ensinamentos nos programas respectivos.
Digo isto baseado em minha própria experiência, já que eu mesmo levei a cabo programas
de formação semelhantes, se bem que diretamente dirigidos a terapeutas e não
tanto a educadores. Penso que através de programas intensivos e breves que não
requerem um tempo excessivo, seria possível oferecer uma ajuda eficaz a professores
que se sentem “queimados”, aborrecidos, incapazes de se relacionarem de verdade
com seus alunos, desmotivados e condenados a continuar fazendo algo em que deixaram
de acreditar, sem nenhuma saída para esta situação.
Freqüentemente tive oportunidade de
falar deste tema diante de auditórios escolhidos e especializados e sempre
captei neles uma ressonância que me dá motivos para sentir-me otimista quanto à
difusão e propagação do conteúdo e das idéias precedentes. Entre estas ocasiões,
duas foram especialmente significativas.
Uma teve lugar no II Congresso Holístico
Internacional, celebrado em
Belo Horizonte, em 1991, onde o auditório aprovou por
unanimidade uma moção de recomendação para a UNESCO no sentido de levar em
conta a urgência de incorporar os fatores emocional e espiritual na educação.
A segunda foi no Simpósio Internacional
sobre o Homem, celebrado em Toledo, Espanha, também em 1991, no curso do qual
realizei uma pequena enquete entre os componentes do auditório que assistia
minha conferência. Quase a metade eram educadores e, também nesta ocasião, a
resposta foi completamente unânime no sentido de apoiar minha proposta em favor
de uma educação mais holística, que deveria nutrir-se dos aportes da “Revolução
da Consciência” e do movimento humanístico em geral, e que privilegiasse o
aspecto afetivo e o crescimento espiritual dos educandos.
[1] No
Limits to Learning: Bridging the Human Gap, James W. Botkin, Mahdi
Elmandjara & Mircea
Maletza, Pergamon Press, 1979.
[2] Cfr.,
por exemplo, o livro de Abercromlie, Anatomy of Thinking, e o de
Mayfield, Thinking for yourself.
[3] The
First World Revolution de Alexander King y Bertrand Schneider.
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