Por Claudio Naranjo
“A pergunta que mais freqüentemente nos
fazemos é ”que?”: Que matérias devemos ensinar? Quando a conversação se faz
mais profunda, passamos a nos perguntar pelo como: que métodos e técnicas são
necessárias para ensinar bem? Ocasionalmente, quando se faz ainda mais
profunda, chegamos a perguntar o por quê: Com que propósito e para que ensinamos?
Porém raramente perguntamos pelo quem: Como pode a qualidade do meu ser determinar
a maneira como me relaciono com meus estudantes, meu tema meus colegas,
meu mundo?”
G. Leonard, Op. Cit.
É
costume começar dizendo que temos muito prazer de estar entre os presentes e, apesar
de eu às vezes recorrer a fórmulas convencionais, a ocasião é tão especial para
mim que não posso deixar de mencioná-lo. Quando recebi o convite telefônico de
Hugo Diamante, disse-lhe que o tema da educação me acalora e, agora, ao
encontrar-me aqui, vejo que este é um dos congressos mais vivos dos que já
assisti, tanto pelo que está sendo dito como pela forma que se está recebendo o
que é dito. Além disso, creio que a estas alturas da vida tenho algo importante
para compartilhar com os educadores, pois me sinto como quem, sem saber, esteve
trabalhando durante muitos anos na elaboração de algo que, de pronto, aparece
como um invento socialmente útil de uma maneira diferente da que havia
imaginado. Explicando melhor: trabalhando na formação de terapeutas aperfeiçoei
um programa altamente potente de desenvolvimento humano que bem poderia
preencher o vazio que tão lamentavelmente sofre a formação de professores no
tocante ao autoconhecimento, relações humanas e vida contemplativa.
Vou
seguir o exemplo de alguns que falaram antes de mim, como o Dr. Janis Rozé e Fernando
Flores, e contextualizando as idéias que vou expressar, contarei a história do
trabalho que venho fazendo, que começou como um trabalho psicológico e
espiritual com buscadores, orientou-se posteriormente para a formação de
terapeutas, e suspeito que vá alcançar sua máxima utilidade como complemento na
atual formação de pedagogos.
Posso
começar esta história com a época em que me coube viajar para a Califórnia pela
primeira vez e conhecer o Instituto Esalen. Eu era um jovem psiquiatra que
trabalhava em um novo departamento da Escola de Medicina da Universidade do
Chile, o Centro de Estudos de
Antropologia
Médica, destinado a mitigar o conhecido processo de desumanização que a educação
médica tradicional produz nos estudantes. Porém, mais que nada, eu mesmo era o que
me caracterizou através da maior parte da minha vida: um buscador.
Hoje,
o Instituto Esalen é bastante conhecido por sua notável história – intimamente ligada
à de Fritz Perls – e por sua influência sobre um grande número de centros
terapêuticos em todo o mundo. Em seu começo, durante a época dos anos sessenta,
o Instituto pretendia implementar uma idéia que Aldous Huxley descreveu como de
ministrar as “humanidades verbais”. Isto requeria fazer acoplamentos de várias contribuições ao
desenvolvimento humano que naquele momento haviam surgido independentemente,
como as diversas disciplinas orientadas para a consciência do corpo, trabalhos
em grupo orientados para a consciência emocional, aplicações da arte ao
conhecimento de si, etc.
Através
de Esalen conheci pessoas que foram importantes em minha vida, como Perls e Simkin,
Alan Watts e Joseph Campbell, porém o estímulo deste centro inovador também foi
determinante para que concebesse criar uma escola que, diferente de Esalen,
lugar onde se recorria a atividades breves, oferecesse um currículo tal – um conjunto
de disciplinas complementares que os estudantes pudessem integrar em uma
síntese original.
Isto
começou com meu regresso ao Chile, depois de Esalen, e mesmo que a atividade que
desenvolvi não chegasse a ter um nome local, o catálogo de Esalen se referia a
ela com a expressão Esalen-en-Chile, e quando regressei posteriormente aos
Estados Unidos, este trabalho constituiu a forma germinal do que tive que
realizar mais tarde ali, assim como a base vivida do livro que naquele período
escrevi (A Única Busca) acerca de metodologia comparada e aspectos subjacentes
a muitos caminhos espirituais e terapêuticos.
Ao
regressar aos Estados Unidos, Esalen não só me convidou como gestaltista, mas
me deu a liberdade de prosseguir minhas iniciativas experimentais e, foi nesta
época, que mais vivamente senti que convergiam em meu trabalho as influências
recebidas como buscador com aquelas recebidas no campo profissional. Tomou
especial relevo em meu trabalho a combinação entre o terapêutico e a meditação
– o que naqueles tempos era novidade, e particularmente novo era o fato de que
não se tratava de uma simples justaposição de meditação e psicoterapia, mas de
um trabalho de integração entre ambos: exercícios interpessoais através dos
quais se pudesse levar a atitude meditativa a situações de comunicação verbal.
Porém
tudo isto foi interrompido por mais de um ano por uma experiência que posso descrever
como a principal peregrinação de minha vida – quando deixei minha casa, meu trabalho
e meus planos para reunir-me com um mestre espiritual então desconhecido, em
quem reconheci um vínculo com a misteriosa e remota tradição espiritual que
tanta influência teve sobre mim durante a adolescência através de Gurdjieff.
O que
começou como um projeto pessoal, transformou-se em uma nova escola – pois ao perguntar
a Oscar Ichazo (assim se chama o referido mestre) se poderia estender um
convite semelhante a alguns amigos (originalmente John Lilly, Ram Das, Stanley
Keleman e John Bleibtreu), o projeto despertou um insuspeitado interesse em
outros e terminei viajando ao oásis de Azapa (proximidades de Arica no extremo
norte de Chile) em companhia de mais de quarenta companheiros, muitos deles do
ambiente de Esalen.
Dizer
que a experiência foi para mim de profundo impacto espiritual seria pouco, pois
constituiu um verdadeiro nascimento para um nível de consciência previamente
desconhecido e o começo de um caminho de transformação profunda sem volta.
Naturalmente, isto veio a se refletir em meu trabalho posterior, para o qual
tudo até então me pareceu que havia sido uma simples preparação.
Durante
alguns anos este trabalho se concentrou em um grupo de umas sessenta pessoas
(em Berkeley) e tomou a forma de uma contínua improvisação mais que a implementação
de um programa premeditado. Com o tempo, entretanto, foi se cristalizando um programa
propriamente e, para sua realização, tive a sorte de contar com a colaboração
de mestres notáveis como do Rabino Zalman Schachter, Dhiravamsa, o tântrico
Harish Johari e Ch’u Fang Chu – discípulo do último patriarca taoísta, que
naquele tempo chegou na Califórnia, vindo de Taiwan.
Surgiu
assim, outra nova escola, e quando foi necessário dar-lhe um nome (em motivo da
constituição de uma corporação educativa sem fins lucrativos) chamei-a SAT em
tripla alusão à palavra sânscrita para SER e Verdade, às iniciais de Seekers
After Truth (Buscadores da
verdade)
e (através do simbolismo fonético) a uma visão tripartida da mente e das coisas
que transcorrem através do cristianismo esotérico transmitido por Gurdijeff e
Ichazo e caracteriza minha própria compreensão da vida psíquica.
Assim
como meu trabalho no Chile teve como resultado a forma germinal do que vim a realizar
mais tarde nos Estados Unidos, meu trabalho nos tempos do programa SAT
norteamericano resultou na forma embrionária do que uns quinze anos atrás vim a
executar na Europa. Isto começou com o convite de realizar um curso de verão
orientado para a “formação pessoal e profissional” de psicoterapeutas, com o
formato de três sessões (uma por ano) com um mês de duração cada; porém com o
tempo o formato do curso reduziu-se paulatinamente e sua forma atual consta de
três módulos de dez dias.
A
forma como um módulo de três meses se transformou em outro muito mais compacto,
de modo algum poderia ter sido antecipado na forma teórica; somente a evolução
de uma prática no tempo permite a paulatina expressão da criatividade no curso
de um processo emergente. Assim, ao longo de mais ou menos quinze anos e,
graças à evolução destes cursos (mais práticos e vivenciais do que teóricos),
parece-me que acabou de tomar forma algo que espero que possa servir como um
fermento transformador no mundo da educação, depois de haver ajudado um grande
número de terapeutas em diversos países.
Quero
agora lhes apresentar brevemente o conteúdo do currículo, predominantemente vivencial
que, realizado com a ajuda de valiosos colaboradores e refinado progressivamente
através dos anos, está tendo resultados tão satisfatórios.
A
estrutura fundamental (que é algo como a bandeira sob a qual trabalhei desde sempre)
é a de unir a meditação com a terapia, o que não é tão novidade agora como
quando introduzi esta prática em Esalen, há mais de trinta anos. Apesar do que
digam muitas escolas espirituais, que consideram o terapêutico irrelevante, e
as escolas terapêuticas que consideram o espiritual como ilusão ou evasão da
realidade (“ópio do povo”), creio que o âmbito interpessoal da mente e o âmbito
transpessoal ou espiritual não são senão aspectos de um fenômeno único – e a
cura ou reeducação emocional (que não é outra coisa senão o restabelecimento de
nossa capacidade amorosa) não é nem inseparável da realização espiritual nem
dispensável na Grande Viagem da Alma.
A
combinação da meditação (o velho caminho contemplativo) com a psicoterapia (o “yoga
interpessoal” que constitui o principal aporte de nossa cultura para o caminho
de realização) tem uma potência muito particular. Quando digo meditação, não só
me refiro a uma dimensão muito grande, mas a uma realidade multifacetada, pois
a meditação reúne em si muitos elementos, alguns dos quais são exaltados
preferentemente em uma ou outra cultura.
Minha
maneira de ensiná-la, como se verá, é integrativa, ainda que coloque em relevo
a contribuição do budismo.
Falar
de meditação no sentido mais amplo da palavra, praticamente coincide com falar de
espiritualidade, já que as diferentes técnicas de meditação conhecidas
constituem os principais exercícios espirituais da humanidade. Porém quando se
fala de espírito e de espiritualidade às vezes se tem uma idéia muito vaga ou
fragmentária do que são, e um conhecimento amplo da meditação pode ser a melhor
forma de preencher esta lacuna em nossa educação, pois a dimensão espiritual da
vida, como a meditação, é multifacetada, e cada um dos aspectos desta última
constitui uma via de acesso a essa profundidade da mente à qual às vezes se
alude simplesmente como “consciência superior”.
Quando
no mundo ocidental se afirma que é importante a consciência espiritual, o que aproximadamente
se quer dizer é que é importante o sentimento do divino, ou uma orientação para
o divino. Como resultado de uma confusão entre a vivência do divino e a
ideologia ou mera crença, entretanto, assim como da crescente secularização das
crenças, pode-se dizer que o ideal espiritual assim concebido perdeu
atualidade, e que as formas tradicionais de oração são consideradas por muitos
como um resíduo supersticioso do passado. Por isto, parece-me importante
resgatar o aspecto vivencial do divino, que não depende de ideologia alguma nem
de uma visão teísta das coisas; sua essência é o sentido do sagrado, que se
cultiva através de um tipo de meditação em que se dirige a atenção para
conteúdos simbólicos que têm por objeto a evocação de um valor supremo. (Mesmo
que tal valor supremo não se embase propriamente no âmbito de objetos ou
qualidades, podemos dizer que pode ser projetado sobre imagens, sons, cores e
inclusive conceitos – tais como o eu, o nada, a consciência suprema ou o
divino).
Porém,
por intrínseca que seja a capacidade sacralizante para a maturidade espiritual
e desejável que seja o “reencantamento do mundo” através de seu cultivo, não
devemos confundir o sentimento do sagrado, e menos a intuição de uma divindade
transcendente, com o espiritual, pois estas constituem facetas ou manifestações
do Espírito. Igualmente relevante para a consciência superior é a aprendizagem
implicada por uma forma de meditação onde a pessoa, aparentemente, faz o
contrário da evocação da sacralidade, pois não dá atenção a conteúdos simbólicos,
mas ao sensorial, e em vez de gerar uma experiência do misterioso valor supremo
que envolve o mundo das coisas sem lhe pertencer, dirige seu empenho para uma percepção
simples ou pura do “aqui e agora”, como é típico do budismo Thevarada.
Em
ambos os casos, a meditação guarda relação com a orientação da atenção. Ela
pode apontar para os “dados imediatos da consciência” de que falava Bergson (o
que toco, o que vejo, o que escuto, as emoções, as sensações corporais do momento)
cujo conjunto podemos considerar a superfície da consciência (e é sumamente
importante que possamos recuperar a capacidade de contato com o imediato que
tivemos quando crianças e que talvez perdemos ao estarmos demasiado imersos em
nosso mundo simbólico), ou até a profundidade da mente, que é assento das
vivências do ser, do eu e do divino. Já que esta profundidade da mente não é acessível
à consciência ordinária, todavia é evocada (ou invocada, às vezes) através do
tipo de meditação já referido, em que se apela para a concentração no material
simbólico, que serve para o desenvolvimento da imaginação criativa e a evocação
de significados – e cujo fruto característico é a experiência da sacralidade.
Estes
dois aspectos da meditação constituem aspectos complementares da vida em geral e
convém observar como se fazem particularmente presentes na psicoterapia, sem
que isto signifique que sejam mais relevantes no terapêutico que na educação.
Bem sabemos que um aspecto importante da terapia é precisamente o de recuperar
a capacidade de “presença” ou de estar no “aqui e agora”, como tão
freqüentemente se diz desde os tempos de Fritz Perls.
Hoje
em dia se recorda Perls como o criador de um sistema terapêutico, porém, não se
sabe que foi uma pessoa de estatura profética quanto ao impacto que exerceu
sobre a sociedade de seu tempo; pode-se dizer que foi o profeta do aqui e
agora, que através de seu impacto pessoal fez sentir àqueles que o acercavam
que havia algo como um caminho do estar presente, uma via de desenvolvimento
pessoal que passa pela capacidade de pôr-se na atitude de que o passado já não
existe e o futuro, todavia não existe (até agora não fomos tão fundo a ponto de
começar a duvidar também do presente). Se adotarmos a atitude de tomar o
presente como a única coisa que existe, isto leva a um aprofundamento da
experiência do momento, mais remota
e por
sua vez mais rica do que estamos acostumados a crer. Isto nos parecerá como se tivéssemos
perdido em boa medida tanto a capacidade de tomar contato com a experiência do momento
como de admiti-la ou confessá-la. Quantas vezes, no curso de uma conversação,
não nos sentimos aborrecidos, molestados, descontentes com o que se passa, sem
saber como sair de uma situação quando a saída estaria em poder simplesmente dizer:
“Neste momento, não gosto do que está se passando”; ou “Não sei o que está se
passando, mas não gosto”. Só esta liberdade de falar da experiência do momento,
apesar de vago, mudaria o rumo da conversação. Porém não sentimos que está
entre os cânones da vida social falar do que se passa no instante, ou, se
começamos a explorar o assunto, encontramos muitas dificuldades.
É
precisamente a tomada de contato com o presente, junto à comunicação da experiência
presente, o que mudou o espírito das terapias contemporâneas quando começou a fazer
parte delas. Antes, a psicanálise havia convidado muito à reflexão sobre o
passado, sobre o que se passou na infância da origem dos problemas
psicológicos. Já com Reich começou-se a observar mais o que acontece no presente,
e Perls foi quem pôs ainda mais ênfase nele, chegando a propor que basta o
indivíduo trabalhar com o presente para que recupere a capacidade e o direito
de sentir o que sente, de saber o que sente, de saber o que pensa, de saber o
que está fazendo e de dar-se conta do óbvio. Porém assim como é importante essa
recuperação da capacidade de experiência, podemos dizer que a patologia
descansa nesta perda da capacidade de saber o que sentimos, e o que chamamos
inconsciente descansa neste não ter direito de saber o que se passa em nós, que
por sua vez vem ao lado de nos tornarmos cúmplices de uma mentira social.
Porém,
assim como o que medita nem sempre dirige sua atenção para a experiência do momento,
também no mundo do terapêutico, que se move na linguagem, não só é importante a
recuperação do simples presente. Também é importante a recuperação da dimensão
mágica da vida e, quando se fala do transpessoal em psicoterapia, em grande
medida tem a ver com a recuperação disso que nos trazem as concepções religiosas
do mundo, desdenhadas pelo cientificismo de uma psicologia nascente: os
ensinamentos espirituais, os mitos e os contos de fadas, que sendo como dedos
que apontam para a lua, não devem ser confundidos com a própria lua. Neles se
recorre ao simbólico para ir além do simbólico – ao centro da mente em si – para
evocar algo que transcende os conteúdos específicos da mente e que podemos
conceber como a própria consciência, a essência divina da mente e a fonte da
sacralidade.
Afirmei
que o desenvolvimento espiritual é multifacetado e que tão relevante para este
é o cultivo do sentimento religioso, como o cultivo da atenção para a realidade
imediata, que tão pouco espiritual parece a partir de uma perspectiva cristã
tradicional. Outra via de acesso para a maturidade espiritual (que introduzimos
no segundo módulo do programa depois de
haver começado pelo vipassana), é o que se vê representado por formas de
meditação em que se procura deter a mente para transcendê-la. Isto se consegue,
por sua vez, através da
concentração.
Os
ensinamentos tradicionais de diferentes culturas nos dizem que só quando a
mente se aquieta pode refletir algo que está além dela mesma. Necessitamos
inibir nossa mente passional e as vozes interiores que vêm do egóico, inibir
nossas necessidades neuróticas e aprender assim a deixar o pensamento em um
pacífico silêncio.
Ainda
mais, se a meditação é saber parar quieto, também é certo que é o contrário; ou
melhor, o complementar: deixar a mente fluir.
Existem
várias complementaridades na mente, e a meditação só pode ser explicada de forma
paradoxal. É como ter um pé em cada aspecto do paradoxo para colocar a cabeça
em outra dimensão. Assim como constituem uma polaridade as práticas em que se
dirige a atenção para a superfície da mente ou, alternativamente, para sua
misteriosa profundidade (através de representações simbólicas), assim ocorre
com o cultivo da quietude e aquele aspecto da meditação que consiste em uma
educação da espontaneidade interior: o deixar que a mente vá aonde quiser, afrouxando
seu controle voluntário limitante. Claro que o paradoxo é tal, que quando
alguém afrouxa o controle de seus próprios processos mentais, é provável que
estes se aquietem; e também o contrário: se alguém sabe realmente ficar quieto
ocorre algo análogo como deixar-se ir em um barco e deixar de remar: a água o
leva. E se alguém se deixa levar, as correntes mais sutis e profundas do
próprio ser começam a se fazer sentir. E assim como quando se calam os alunos
na sala de aulas pode-se escutar o que diz o professor, também dentro de si se
as vozes pequenas se calam, pode-se ouvir uma voz que está em outro nível. E
vice-versa: quando se manifesta nossa mente profunda, é mais fácil calar-se.
Isto pode levar inclusive a um momento solene em nosso desenvolvimento: quando
se expressa um novo nível de vida em nós
e começa a morrer dentro de nós o que então nos parece como banal ou trivial.
Estes
dois aspectos da meditação – a quietude e a espontaneidade – têm a ver com a ação
e suas respectivas consignas, podem se comparar às luzes vermelha e verde do
semáforo, com seu significado de deter-se ou avançar. Assim, tanto a quietude
como a espontaneidade são aspectos da vida que merecem ser apreciadas e
cultivadas, e são, também, componentes da psicoterapia.
Pode-se
dizer que muitas das teorias da psicoterapia formuladas pelos originadores das escolas
tradicionais giram em torno de algumas idéias mais ou menos certas, porém não
chegam a proporcionar uma explicação universal. Se buscarmos uma teoria
abrangente transistêmica da psicoterapia,
certamente um dos princípios gerais que encontramos é precisamente o cultivo da
espontaneidade profunda, o deixar-se levar. Ainda que se trate do psicodrama de
Moreno, que falava explicitamente do cultivo da espontaneidade, da associação
livre da psicanálise ou de grupos de encontro, obviamente é isso o que entra em
jogo: desestruturar para que, ao romper as formas mais superficiais do
pensamento e da comunicação se manifestem estruturas mais profundas, e possam
assim aflorar as verdades menos óbvias. Isto é especialmente aparente no caso
da Gestalt, que é uma importante manifestação do espírito dionisíaco do mundo contemporâneo
– desse espírito que implica na fé no espontâneo e natural, e que Nietzsche proclamou
como a única salvação possível de nossa cultura ocidental (tão desvitalizada e desumanizada
por efeito de um milenar autoritarismo religioso e sua “moral de escravos”).
Além de ter um apreciável componente gestáltico, o programa SAT inclui dois
elementos que se prestam especialmente para a educação da espontaneidade: um
conjunto de exercícios psicológicos baseados na associação livre de idéias (que
descrevi em meu livro Entre Meditação e Psicoterapia), e uma disciplina nova
surgida da dança: o “movimento autêntico”, ensinado originalmente por Mary
Whitehouse.
Assim
como contrapus o “pare” e o “siga” da meditação, e descrevi uma polaridade
entre os gestos interiores de verter a atenção para a profundidade sagrada da
mente ou até os conteúdos concretos desta, podemos compreender a dimensão
afetiva da mente (não menos relevante para a meditação) em termos de uma
complementaridade. Muitas formas de meditação têm como assunto de base o
desapego: um dar um passo atrás, desidentificando-se do que está se passando,
sentindo ou desejando. Estamos nos tomando demasiado a sério, pode-se dizer, estamos
demasiado imersos em nossa dor ou em nossas preferências, em nossas opiniões e especialmente
em nossas cicatrizes – quer dizer nos melindres do que nos aconteceu alguma vez
e que, todavia, recai sobre nós como uma sombra ou como um fantasma,
separando-nos do presente. O que os orientais chamaram Karma não é outra coisa
senão o peso do passado sobre o presente (que não precisa necessariamente ser
de outras vidas). Em vista do apego que caracteriza nosso estado habitual (e
muito mais as perturbações emocionais) necessitamos dar um passo, às vezes em
forma de humor, às vezes simplesmente de forma serena. Naturalmente tal
“atitude filosófica”, característica da sabedoria, pode ser alcançada com o tempo
através da experiência da vida, porém é parte intrínseca de certas práticas de
meditação cujo fruto é o que propus chamar uma “indiferença cósmica”.
Por
mais que seja um ideal da vida chegar a uma atitude amorosa, não são incompatíveis
o amor e o desapego; e não só não são opostos, como também constituem uma misteriosa
complementaridade: é mais fácil a chegada ao amoroso se somos capazes do desprendimento,
pois não se pode dar quando se está demasiado apegado ao que se é ou ao que se
tem. E é também difícil conseguir o desapego sem uma atitude generosa, sem entusiasmo,
amor à vida, amor ao outro, amor a algo. Esta complementaridade é similar à da vida
e da morte, que tão entrelaçadas aparecem em certas obras literárias.
Se a
terapia tem que ver mais com o pólo do amor, a meditação aponta mais ao desapego,
porém também é certo que, tanto na teoria da terapia como na teoria da
meditação, necessitamos considerar ambos os assuntos e compreender sua
complementaridade.
Porém,
quão distante está de nossa prática educativa a idéia de que o silêncio mental
ou a desidentificação das paixões (desapego) possam constituir capacidades
fundamentais do ser humano e seu cultivo uma importante via para a consciência
espiritual. E quanto mais distantes estamos de levarmos a sério essa capacidade
de entrega, de sintonia com a profundidade da vida, de acordo com o todo! Hoje
em dia apenas se propõe combinar a instrução com uma “educação dos valores”,
porém na prática só se traduz, no melhor dos casos, em uma valoração de tais
valores. As capacidades que aqui proponho como facetas essenciais da vida
espiritual requerem, pelo contrário, muito mais que entusiasmo e retórica:
cultivam-se através de uma prática transformadora e requerem a presença de
guias que, através da disciplina correspondente, tenham chegado a encarná-las.
Outro
tanto se pode dizer do aspecto da meditação que se orienta para o desenvolvimento
da capacidade sacralizante, que parece haver se tornado irrelevante em nosso desencantado
mundo pós-moderno. Acaso então os gênios religiosos da humanidade foram meros
sonhadores ao nos recomendar o amor a Deus como o mais importante dos
preceitos? Suspeito que a deterioração coletiva da consciência seja resultado
de nosso espírito excessivamente mercantil, ao que não convém que se invoquem
valores que possam competir com as ganâncias.
Porém
deixo aqui o tema da meditação e passo para a consideração do elemento terapêutico
neste currículo de desenvolvimento humano que estou propondo como complemento para
a atual formação de educadores. Ao anunciá-lo como um currículo (suplementar)
de
“autoconhecimento,
reeducação interpessoal e cultivo espiritual” já aludi implicitamente ao terapêutico
através de dois fatores intimamente conexos: o do conhecimento de si ou
insight, e o de promover uma mudança voluntária nas relações humanas. E assim
disse que no programa SAT se combinam meditação e psicoterapia, no entanto, é
mais preciso dizer que nele se combinam a meditação, o autoconhecimento e a
reparação interpessoal.
Começo
por explicar o referente ao autoconhecimento, que constitui o objetivo das
assim chamadas psicoterapias de insight ou “psicoterapia profunda”.
O
autoconhecimento foi reconhecido desde sempre como uma via de transformação. A ele
professamos certa veneração coletiva ao “Conhece-te a ti mesmo” que tanto
associamos com a figura e missão de Sócrates e com o Oráculo de Delfos; porém
nisto somos coletivamente hipócritas, pois caso contrário o autoconhecimento
teria lugar fundamental em nossa prática educativa.
Os que
sofrem psicologicamente, quer dizer, os que não podem desconhecer seu mal emocional,
descobriram que necessitam do autoconhecimento para corrigir seu estado disfuncional
e a necessidade de cura coletiva alimentou o desenvolvimento do novo caminho de
transformação que é a psicoterapia moderna.
Enquanto
que as escolas espirituais tradicionais abordaram a superação do ego através da
prática da conduta virtuosa e da contemplação espiritual, a psicoterapia espera
em primeiro lugar que a transcendência dos condicionamentos infantis sobrevenha
através da compreensão de si mesmo. E ainda que se possa argüir que a
psicoterapia não trouxe tanta luz ao mundo como as grandes religiões com seus
santos e profetas, não se pode desconhecer sua contribuição, formidável e talvez
indispensável para o nosso tempo.
O
empreendimento de encaminhar-se para a compreensão de si mesmo compreende diversas
facetas:
1. – A
tomada de contato com a própria experiência no aqui e agora, que implica não só
na capacidade de aceitação e reconhecimento da própria experiência que se
cultiva na prática da meditação (e especificamente com a técnica do vipassana),
mas numa educação da capacidade de ser testemunha de si mesmo, quer dizer, de
viver o mais conscientemente possível em lugar de andar pela vida “no piloto
automático”.
2. – A
retrospecção, quer dizer, a tomada de contato, através da recordação, com a
experiência passada. Tal clarificação retrospectiva é estimulada e facilitada,
por sua vez, pela expressão, seja através da escrita ou da comunicação oral. Em
nosso programa, põe-se a escrita a serviço da compreensão da própria vida, por
um lado, e, por outro, a comunicação oral sistemática, através da associação
livre em um contexto meditativo, serve para o esclarecimento e análise das experiências
cotidianas.
3. –
Outra faceta do autoconhecimento é a compreensão da experiência do momento no contexto
da experiência total. A compreensão de si mesmo vai além de saber o que se
sente e o que se pensa em um momento determinado: o que na psicoterapia se
chama insight, implica na organização de nossas observações de nós mesmos em
uma configuração coerente, o que implica entender, por exemplo, os padrões
repetitivos em nossa vida relacional, assim como a relação de nossas
experiências presentes com as do passado. Implica, também, entender nossa personalidade
e como ela influi em nossa vida. O maior estímulo para a compreensão de nós mesmos
nos é proporcionado pelo diálogo com quem, em virtude de seu próprio autoconhecimento,
é capaz de entender o que nos sucede. No programa SAT este diálogo tem lugar no
contexto de diversos exercícios psicológicos interpessoais e em laboratórios
terapêuticos com gestaltistas e outros profissionais.
4. – A
tudo o que disse deve agregar-se um componente adicional do processo de autoconhecimento,
como é a clarificação da compreensão através de formulações teóricas ou mapas
de referência. Cada escola psicológica interpreta as experiências do indivíduo
a partir de uma teoria algo diferente, e aquela na qual nos apoiamos não são nenhuma
das conhecidas no mundo acadêmico, mas uma versão da psique desenvolvida a
partir de uma inspiração esotérica da Ásia central.
O mapa
psicológico mais satisfatório e esclarecedor que conheci até agora não é nenhum
dos propostos até hoje no campo da psicologia acadêmica, mas um que nos chegou
de uma tradição esotérica asiática, que desenvolvi no que chamo “Psicologia dos
Eneatipos”. Refiro-me à aplicação do Eneagrama ao estudo da personalidade –
algo que até agora encontrei pouca ressonância no mundo profissional, talvez
porque a abundante literatura produzida pelos divulgadores deixa tanto a
desejar que o entusiasmo popular pelo tema é interpretado pelos acadêmicos como
sinal de mediocridade.
Foi
Gurdjieff quem introduziu o Eneagrama no Ocidente, e quem quiser saber mais
sobre seu pensamento a respeito, pode encontrar algo em um livro muito
interessante de um jornalista russo da época – Ouspensky – intitulado Em Busca
do Milagroso.
Gurdjieff
constituiu uma das influências principais em minha vida, mas as aplicações psicológicas
do Eneagrama foram algo que aprendi com um boliviano a quem mencionei a propósito do meu ano de
peregrinação em Arica: Oscar Ichazo, que sob o nome de protoanálise apresentou
ante o colégio de psicólogos do Chile, em 1969, um conjunto de noções nas quais
se
pode
reconhecer a continuidade com uma tradição cristã muito antiga, da qual a
doutrina dos pecados capitais é um eco; há muitos séculos o que constituiu uma
psicologia prática no tempo dos Pais do deserto e hoje em dia sobrevive como
dogma da Igreja, perdeu-se como
conhecimento
vivo no Ocidente.
Em
nossos dias podemos reformular a doutrina dos pecados capitais dizendo que, por
termos todos sofrido durante a infância em maior ou menor medida uma frustração
amorosa, desenvolvemos uma maneira específica de tentar conseguir o que nos
faltou; e assim, por exemplo, desenvolvemos uma paixão pelo aplauso, pelo conhecimento, pela intensidade, pelo que
quiserem, etc. Enfim: aprendemos muitas manobras para conseguir amor, e não
conheci melhor mapa para entender a variedade destas manobras do que o
Eneagrama, coerente com aquele de que se utilizava Dante ao classificar os
pecadores no inferno ou no purgatório. Em alguns a dinâmica fundamental é o
orgulho, em outros a inveja, etc., e existem psicólogos que se interessaram
principalmente por uma ou outra destas emoções básicas (como Melanie Klein com a
inveja; Karen Horney, que fez do orgulho o centro de toda a compreensão do
psíquico; ou Freud com a angústia e o medo). Porém o Eneagrama permite ter uma
visão global dos tipos humanos e se começa a perceber que não existe uma
psicologia, mas nove; cada uma com sua loucura implícita, com suas idéias
disfuncionais e com suas necessidades particulares exageradas.
Passo
agora para o tema da educação interpessoal, que mais que nenhum outro aspecto da
educação, implica necessariamente no re-aprender, na reparação relacional, no
trabalho encaminhado para a mudança de conduta. Podemos dizer que, como no caso da compreensão
de si mesmo, esta reeducação vai mais além de fórmulas ou técnicas,
constituindo um aspecto potencial de cada momento de nossa vida.
No
currículo do SAT, um componente especialmente importante deste propósito de reparação
é o trabalho encaminhado para a recuperação do vínculo amoroso original com os pais.
Desenvolvi este trabalho muitos anos atrás, inspirado pelo que então levava a
cabo de forma individual um clarividente norte-americano, Robert Hoffman, que
por sua vez, refinou o processo grupal proposto por mim, originando o assim
chamado “Processo Hoffman da Quadrinidade”.
Já que
incluí neste livro o capítulo escrito anos atrás acerca de Hoffman e de seu enfoque
terapêutico na “A Agonia do Patriarcado”, chamando a atenção sobre o potencial
desta notável contribuição para a reeducação da capacidade amorosa para uma
educação futura, só direi aqui que o processo que implementamos no programa SAT
não é idêntico ao que oferecem os representantes do Instituto Hoffman
Internacional, mas as idéias básicas são as mesmas. Já que o vínculo amoroso
com o pai e a mãe se vê afetado na maior parte dos indivíduos, pela interferência
de um ressentimento, consciente ou inconsciente que requer ser sanado e isto,
por sua vez, requer a tomada de consciência completa da dor, assim como a
catarse da raiva
reprimida.
Somente desta forma pode-se pretender chegar, através da compreensão e compaixão,
ao perdão e à benevolência espontânea.
Do
restante das relações de nossa vida, nenhuma é comumente mais importante que a relação
de casal, e as relações amorosas também recebem uma atenção específica no
programa SAT através de um curso dedicado ao aproveitamento das dificuldades
nas relações de parceria para o trabalho de evolução pessoal. E complementam os
trabalhos mencionados aqueles em que se atende à elaboração de outras situações
interpessoais pendentes – o que se realiza através de oficinas de Gestalt e do
laboratório de psicoterapia integrativa.
O
programa oferece suficiente oportunidade de experimentar a terapia gestáltica e
de aprendê-la, se há interesse, como um curso de aperfeiçoamento para muitos
gestaltistas já formados. Esta ênfase em uma escola determinada de psicoterapia
bem poderia parecer arbitrária em uma época em que as escolas de
psicoterapeutas se multiplicaram e a Gestalt perdeu a proeminência que teve
umas três décadas atrás, porém, por mais que a Gestalt constitua uma de minhas
especialidades, creio que a escolha desta modalidade terapêutica (acima da PNL
ou da AT, por exemplo), justifica-se plenamente por sua universalidade, sua utilidade
para terapeutas ecléticos e, muito particularmente, por sua relevância na
educação.
Justamente
porque a Gestalt é um meio muito plástico e muito criativo de abordar a vida emocional,
já foi eleita como complemento terapêutico mais relevante para a instrução por George
Brown, que há décadas atrás foi decano da Escola de Educação da Universidade da
Califórnia
em Santa Bárbara.
Brown foi fundador, muitos anos atrás (com o apoio da
Fundação Ford) de um projeto que chamou Confluent Education (Educação Confluente)
no qual se adotou a Gestalt para a preparação de mestres que tivessem, além da
capacidade de ensinar, a de haver-se com o que ocorre humanamente no aqui e
agora, tanto em si próprios como com os estudantes. Para poder, por exemplo,
perguntar a alguém de cara feia, o que se passa, sem medo de não saber o que
fazer com a realidade de sua experiência. Isto implica em uma formação (caracteristicamente
posta em relevo na Gestalt) que lhe permita entrar em um encontro verdadeiro;
de poder fazer um parêntese no processo de instrução quando for necessário
atender a realidade afetiva e interpessoal do momento.
Quero
sublinhar a grande relevância da terapia Gestalt para a educação assinalando
que, quando Perls ensinava nos EUA através do Instituto Esalen, muitas vezes
não anunciava suas oficinas como psicoterapia, mas falava de “educação da
expressividade”, “educação atencional”,
“educação
do estar presente”, etc. A capacidade que a Gestalt pretende educar é tão
universal que nem sequer a apreciamos devidamente: saber o que se passa conosco
e ser capazes de “estar aqui”. E, não obstante é algo tão difícil que só os
buscadores avançados, as pessoas que
já têm
um certo caminho andado apreciam devidamente e compreendem cabalmente o que é isso
de cultivar o estar presente. Muitas vezes perguntei às pessoas nos grupos com
que trabalho “O que você busca?”, “O que conseguiu?”, “Onde está?” E comprovo
que só os mais maduros respondem que seu empenho é estar mais presentes.
O
laboratório de psicoterapia integrativa a que me referi é um dos aspectos mais significativos
e originais do programa SAT, pois através dele os participantes adquirem rapidamente
uma capacidade de ajuda que não se apóia em conhecimentos teóricos, mas na experiência,
na compreensão de que as capacidades humanas tais como a de escutar, compreender
o que se diz e querer o bem do outro. À parte o benefício que isto possa trazer
para outros, o exercício terapêutico dos aprendizes ao longo da série graduada
de exercícios terapêuticos que compreende este programa prático, resultou um
apreciável benefício dentro do próprio grupo, estruturado de tal maneira que
cada pessoa recebe terapia de um companheiro e a oferece a outro em uma
situação supervisionada. Além do benefício terapêutico que se consegue para cada
membro do grupo nesta situação, a experiência deste laboratório – com suas
sessões grupais de comentários que promovem um clima generalizado de
transparência – contribui significativamente para a formação de uma verdadeira
comunidade. E é assim como freqüentemente, ao finalizar o programa, ouve-se
dizer aos que compartilham suas impressões retrospectivas que sua vida não será
a mesma depois de terem se sentidos tão aceitos, acolhidos, compreendidos ou
queridos por seus companheiros.
Este
aspecto do programa me parece uma de minhas
contribuições mais inovadoras e surpreendentes por sua efetividade,
apesar de que, passo a passo, durante sua elaboração, longe de sentir-me
original, apenas tentei formular exercícios inspirados nos aspectos mais universais
da psicoterapia. Só ao tomar consciência de que não existe (que eu saiba) um programa
tão breve e efetivo, pareceu-me original, e está claro que o centro desta
originalidade consiste em que se possa aprender a fazer psicoterapia sem mais
que breves formulações teóricas – levando adiante a proposta de Rogers de que
os aspectos determinantes na atividade do terapeuta são a empatia, a
benevolência e a autenticidade.
A mim
parece que a psicoterapia complicou-se muito; mistificou-se muito ao colocar em
relevo coisas que não são as fundamentais. E penso que as determinantes fundamentais
de uma boa psicoterapia são principalmente pessoais, e não técnicas nem
teóricas. Talvez a principal seja que o terapeuta entenda o que se passa com o
outro; se o terapeuta entende o que se passa com o outro, não é necessário
sequer que o diga, porque isto tem um efeito quase mágico: o outro sabe
intuitivamente e se sente entendido.
Também
é importante que o terapeuta se interesse pelo bem do outro, que seja benevolente.
E também isto o fará sentir, independentemente de que o expresse com fórmulas
do
tipo “Sim, estou contigo, te escuto” ou não o expresse; talvez seja de melhor
gosto não expressá-lo, quando é um excesso fazê-lo. Não menos importante é a
autenticidade; faz-se terapia pela verdade e através de um chamamento à verdade
do outro.
Porém
estas três coisas – a capacidade do terapeuta de ser autêntico para assim
induzir a autenticidade do outro; a capacidade do terapeuta de interessar-se
pelo outro; e a capacidade do terapeuta de entender o outro – são coisas que
não se cultivam nas universidades. Não se cultivam lendo livros nem se cultivam
através de laboratórios técnicos:
cultivam-se através de um processo pessoal e creio que esta é a hora de mudar
de orientação.
Enumerei
algumas influências que se fazem sentir fortemente no programa SAT – como Gurdjieff,
Ichazo, Perls, Hoffman e Rogers -, sem mencionar que boa parte do ensinamento
da meditação através dos módulos sucessivos do programa se ajusta às três
tradições fundamentais do Budismo: a antiga tradição Theravada (representada
principalmente pelo Vipassana), o Mahayana (representada pelo Budismo Zen), e o
Vajrayana ou Budismo Tibetano. É justamente a concepção pedagógica da Escola
Nyingmapa, do Budismo Tibetano, que inspira o programa de meditação em seu
conjunto – desde seu começo com o Vipassana, sua continuação com o Shamata ou
pacificação da mente, como fundamento para a indagação vivencial acerca da essência
da consciência, só que, tendo sido discípulo de um mestre altamente criativo –
Tarthang Tulku Rimpoche –, permitiu-me também certa criatividade no relativo a
outros aspectos da meditação (como a visualização, o devocional e o
desenvolvimento da compaixão) ao substituir as formas tradicionais por
aplicações inovadoras da escuta musical, como bem se poderia esperar das
aplicações para a meditação e para a psicoterapia de alguém que foi músico
antes de ser médico – o que explica que outro dos componentes que se faz sentir
através do programa SAT seja a música.
Seria
demasiado longo explicar aqui cada um dos elementos que integram o programa SAT,
se bem que alguns dos que apenas mencionei são originais e mereceriam um livro
à parte – como, por exemplo, o laboratório de psicoterapia que desenhei não só
com um propósito de treinamento, mas como uma forma de configurar um sistema
grupal auto-reparador. Outra disciplina que surgiu no desenvolvimento de nossos
cursos – como um encontro entre minha iniciativa e a perícia de alguns
discípulos colaboradores – foi uma forma de teatro terapêutico que integra
tanto o elemento gestáltico como a psicologia dos eneatipos.
Um
componente adicional do programa foi o trabalho psicocorporal, cuja essência é
a consciência do corpo e que leva tanto à correção postural como à melhora na
fluidez do movimento, que abunda em implicações tanto psicológicas como
espirituais. Através de muitos anos de experimentação, recorri a elementos
muito variados que vão desde o yoga e o tai chi até a eutonia, privilegiando
ultimamente o método de Rio Aberto e o movimento autêntico. Também pertence ao
âmbito psicocorporal um trabalho desenvolvido por discípulos mexicanos
(Chalakani
e
Kretzschmer), que combina a técnica do “renascimento” com a regressão a estes
estados que Grof propôs chamar “matrizes pré-natais”.
Deixo
aqui o comentário acerca dos principais componentes do programa SAT – comentário
que naturalmente, não basta para dar uma idéia do que o conjunto gera, ao ser posto
em prática, um processo de fecundas interações e, portanto, um sistema vivo que
vai além de suas partes. A partir de um ponto de vista diferente, poderia ter
falado deste processo como “uma máquina de moer egos”, uma iniciação para um
caminho de desenvolvimento espontâneo que jaz em nós mais além de ideologia
alguma, ou uma escola viva, cuja essência se encontra mais nas pessoas que
ensinam do que num currículo explícito.
Existem
aqueles que falaram da escola SAT como uma escola de amor, como um lugar em que
se aprende a ser mais humano e mais verdadeiro. Para muitos, significa um descobrimento
da dimensão espiritual da vida. Um grande número de participantes deixa para trás
velhas maneiras de sentir e de ver as coisas, e sentem que sua vida toma outro
rumo. É para a maioria, uma entrada num caminho de transformação e para os mais
comprometidos, um atalho considerável do caminho.
Um
aspecto importante do Programa SAT é de natureza psicossocial: o grupo de participantes
se torna um grupo de verdade no qual cada um pode mostrar-se como é, explorar condutas
alternativas e descobrir que é aceito e querido além de seus papéis habituais.
Porém o programa SAT não somente é um processo em que as pessoas se sentem aceitas
e validadas, pois existe também um forte elemento de confrontação e eu diria
que estão bem equilibrados o aspecto nutritivo com a proposta de uma “guerra
santa contra o ego”.
Em
alguma ocasião convidei um grupo de colegas a compartilhar o que a “experiência
SAT” havia sido para eles, e me chamou a tenção a ênfase que deram a como havia
sido um presente para os participantes ter o exemplo de docentes que “trabalham
sobre si mesmos” ao invés de isolar-se por trás de um rol profissional.
Quando
hoje em dia se reconhece amplamente que a psicoterapia depende mais da relação
do que da técnica ou mesmo do insight, no fundo do que se fala é da benevolência do terapeuta, que permite que ele
“acolha” seus pacientes de uma forma que seus pais não souberam fazê-lo. Menos
amplamente se reconhece o valor terapêutico da autenticidade, que me parece, um
ingrediente fundamental desta escola viva.
Observou-se
reiteradamente como a prática terapêutica oferecida no Programa SAT interessa e
serve tanto para terapeutas de alto nível como a principiantes, e que cada um
dos cursos é “quase um milagre” pelo muito que ocorre e pelo muito que se
aprende. Parece-me que, efetivamente, assim o é, e considero tal êxito uma
confirmação experimental de minha convicção inspiradora: que para ajudar os
outros não são necessários longos estudos, mas a experiência da própria viagem
interior através do autoconhecimento e do esforço realizado: um treinamento
prático vivencial relevante, uma visão clara de certas coisas fundamentais e a capacidade
de encontro com o paciente. Pela proeminência desta última na prática
educacional que desenhei, falamos às vezes de aprendizagem graças a uma “cura
pela verdade”.
Termino
com uma consideração acerca de como nosso mundo enfermo e em crise necessita do
apoio para a transformação individual: a sociedade saudável se faz com
indivíduos saudáveis, e não podemos esperar que a necessidade de
auto-realização venha a ser satisfeita mais que em parte pelas vias
tradicionais. Faz-se desejável algo assim como uma democratização da
psicoterapia ou, mais amplamente, uma educação em como trabalhar espiritual e psicologicamente
em si mesmo, e em como ajudar-nos uns aos outros.
Dificilmente
podemos esperar um mundo melhor sem mudar nossa educação, tornando-a algo
relevante para o desenvolvimento psicoespiritual. E para mudar a educação é
necessário injetar algo novo na formação de educadores.
Expliquei
como surgiu o Instituto SAT em resposta ao interesse de um grupo de buscadores
na Califórnia durante os anos 70, e como renasceu, anos depois na Europa, em resposta
ao interesse dos terapeutas. Muitos educadores assistiram aos cursos, porém só ultimamente
as instituições começam a se interessar, e isso me enche de alegria, porque me parece
haver desenvolvido algo que, através do auspício dos educadores, promete ser de
grande utilidade pública; e sonho que meu “invento” possa algum dia contribuir
para que tenhamos um mundo mais favorável para os que vêm depois.
Imagino
que a maioria estará de acordo que, se queremos um mundo diferente, dificilmente
vamos consegui-lo somente com política, ou meramente através do progresso espiritual
ou terapêutico de indivíduos isolados. E nem sequer através da formação
psicoespiritual independente de mestres: será necessário o compromisso de
universidades e o financiamento de programas dirigidos às equipes de docentes
de escolas específicas, para que, transformando-se em grupos verdadeiros,
cheguem a constituir um ambiente favorável ao exercício de capacidades atualmente
desaproveitadas dos docentes, assim como a expressão e livre desenvolvimento
dos alunos.
Que
isto não acontece agora me é visível pelo fato de que muitos professores que passaram
por nosso programa me dizerem que, apesar do grande benefício pessoal que lhes trouxe
e das novas capacidades assistenciais adquiridas, de pouco lhes serve o que
aprenderam e viveram quando retornam aos seus ambientes de trabalho. E não
duvido que muitos demonstraram no curso do trabalho grupal uma grande
capacidade de ajuda para o desenvolvimento dos demais; porém sentem que o
ambiente das escolas é incompatível com uma expressão plena da humanidade e que
não favorece a manifestação de suas capacidades, como se o sistema estivesse
lutando com a consciência.
É
trágico porque a educação, dentre todas as instituições humanas, deveria ser a responsável
por velar pelo desenvolvimento humano. E não só atravessamos um momento histórico
em que nosso estancamento psicoespiritual tornou-se crítico, mas, além e,
sobretudo, estamos no mundo para florescer e frutificar, quer dizer, para
desenvolver nossa consciência.
É de
estranhar então, que nosso subdesenvolvimento em matéria de humanidade se expresse
num sem fim de distúrbios e sintomas?
Os que
leram meu livro “A Agonia do Patriarcado” conhecem minha opinião de que a crise
universal que caracteriza nosso tempo, abarcando desde as finanças até a
ecologia e a qualidade de vida, é no fundo uma crise pela escassez de amor e
sabedoria – o que equivale a dizer um descuido do desenvolvimento. Os
educadores parecem albergar muito boas intenções, porém seu afã nos oculta a
resistência da instituição à mudança radical. No Chile fui secretário privado
de um Ministro de Saúde no começo de minha carreira, e me dei conta do quão
fácil é perder-se na política, mesmo com as melhores intenções. Convém ter
presente que, assim como existe uma patologia individual, existe também uma
patologia do sistema; uma espécie de espírito do sistema, o ego social maligno.
E assim como acontece no caso do ego individual, sua destrutividade repousa em
uma inconsciência. Como Cícero observava (não me recordo de suas palavras
exatas): “Cada senador é um grande homem, porém o Senado em seu conjunto é um idiota.”
Assim, pois, e apesar de que muitos políticos tenham as melhores intenções, a
política é uma máquina infernal, e nem sequer as melhores intenções bastam para
mover montanhas.
Talvez
ocorra assim com a educação, não sei. Porém, a inércia institucional que faz da
educação um imenso “elefante branco” é maior e, sobretudo, muito mais temível
do que se pensa, e o fato de que esta “inércia burocrática” não pareça sê-lo,
somente a torna ainda mais poderosa.
Creio
que o público em geral e os educadores em especial devam adotar uma atitude revolucionária,
pois já não há lugar para outra. Espero que entre todos possamos influir para
que as autoridades empreendam outro rumo. A educação serve para o
desenvolvimento humano, por muito que se queira usar para outras coisas também,
e por muito que a inércia de nossa plutocracia pseudodemocrática exija uma
educação para a docilidade automática e para a produção, creio que uma educação
para a livre realização de nossas potencialidades evolutivas e criativas pode
ser crítica para nossa sobrevivência coletiva.
Mudar a educação para mudar o mundo – cap.6